Comentário sobre o livro Amor paixão feminina, de Malvine Zalcberg (Editora Campus, 2008)


 

O amor é sem medida

* Por Heloisa Caldas

O livro Amor paixão feminina, de Malvine Zalcberg, destaca-se pela importância de seu tema. Afinal, desde os tempos mais remotos, o amor interessa à humanidade. O Banquete, de Platão, e A arte de amar, de Ovídio, para citar apenas duas grandes obras da cultura ocidental, atestam isso.

No entanto, a autora se propõe a tratar do amor através da voz feminina, razão pela qual ela parte do amor como o fenômeno que surgiu nos meados do século XII e, posteriormente, inspirou o amor romântico. Só então, a voz feminina, calada por tantos séculos, pôde começar a ser ouvida. Cabe lembrar que também a psicanálise, espinha dorsal teórica do livro, foi contemporânea ao romantismo e muito contribuiu para dar a voz às mulheres.

Assim, as três palavras que compõem o título do livro de Malvine Zalcberg, enlaçam o amor ao feminino e abrem para mundos de saber e cultura acumulados ao longo de séculos. Diante desse desafio, a arte de tecelã da autora é admirável. Ela sabe entrelaçar conceitos diversos, valendo-se, em especial, da psicanálise e da arte. Seu texto é delicado, cuidadoso, preciso. Sustenta predominantemente a psicanálise e atesta como esta se enriquece ao não prescindir da arte e da cultura.

Podemos dizer que é um texto feminino. Não porque a autora é uma mulher, mas pelo fato de ela escrever deixando lacunas à reflexão, espaços abertos à fecundação, ao engendramento e à invenção.  Contudo, é também um texto viril, se levarmos em conta a sustentação dos conceitos. Malvine Zalcberg não se poupa quanto a esse aspecto. Ela aborda a psicanálise de frente, corajosamente, e guerreia para esclarecer conceitos difíceis até para os afeitos à teoria. Se, com determinação, ela afirma que para uma mulher “o medo de perder o amor é uma invariável em seu inconsciente”, ela também cuida de mostrar que, para a psicanálise, as definições de homem e mulher são muito mais complexas do que a anatomia, tendo suas formulações teóricas variado, ao longo dos anos, deixando pontos em aberto. 

Assim, a escrita da autora apresenta a psicanálise em seu feliz paradoxo metodológico: precisão de conceitos sem a pretensão de esgotar os enigmas. Talvez essa fidelidade ao método psicanalítico seja a responsável pelo livro atrair, cativar e, em especial, ensinar. Podemos dizer que ele é, em si, uma prova de amor: um amor de livro e um livro amoroso. Atesta o prazer em falar de amor e revela que o amor se faz através disto: da fala endereçada. A autora o explica ao mesmo tempo que o faz. Sua habilidade com a linguagem e o rumo claro da prosa tomam o leitor pela mão e o conduzem, passo a passo, por uma teorização nada simples, nem fácil. O livro ensina tanto o jovem que se aproxima do assunto, como o estudioso mais experiente. Endereçar-se num mesmo texto a um público tão vasto não é comum. É preciso dedicar-se com amor a essa tarefa de transmissão.

Ao longo de seu livro, Malvine nos mostra que o amor é uma tentativa de construir, através da fala, uma solução aos impasses do ser. Dessa forma, o amor está submetido aos problemas do ser e ter, embora fadado a não resolvê-los por completo. No entanto, é pela via do amor, por meio das fórmulas inventadas por cada um que se pode tratar a vida, conviver com a alteridade, suportar a diferença. E tudo isso porque se é só. Assim, se o amor é esse véu que esconde o desamparo radical de todo humano e ajuda a fazer parceria, não é à toa que esse amor possa ser objeto de uma paixão. E se esse desamparo é a raiz do feminino, então a paixão pelo amor está enraizada no feminino dos sujeitos, sendo as mulheres as que mais se deixam arrebatar por ela. As mulheres são apaixonadas pelo amor.

Eis, então, a demonstração do livro de Malvine Zalcberg: o feminino apela ao amor. E, nas mulheres, o feminino é esse querer... sempre mais... sem limites. Uma demanda por algo valioso, justamente devido a seu aspecto de imprevisibilidade, à alegria infantil do novo, à renovação que torna as coisas cheias de vida, ao que transborda os limites conhecidos e traz esperança de felicidade. Dessa forma, ainda que interessadas pelo gozo sexual, o feminino nas mulheres faz com que elas sejam mais amigas do amor que do sexo. Porque o sexo tem começo, meio e fim. Já o amor não tem medida.

Para concluir, trata-se de uma leitura apaixonante e instigante certamente recomendável a todos: seja o leitor iniciante ou experiente nas coisas do amor; amante ou amado; parceiro ou companheiro; ficante, rolo, caso ou namorado; romântico ou contemporâneo; crente de que o amor possa ser eterno ou descartável; duradouro ou mutável; sólido ou fluído; quer ame alguém em especial, quer ame de forma especial a alguém; quer vise a pessoa amada como complemento de seu ser, quer a tenha como companhia transitória ao longo de seu viver.

Amar é uma paixão!

* Heloisa Caldas é professora
do Programa de Pós-Graduação de Pesquisa
e Clínica em Psicanálise da UERJ